segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Pra reinar de novo

O Rei do Gado está de volta. Em sua segunda exibição no Vale a Pena Ver de Novo e quarta transmissão no país, contando a original em 1996 e a do Canal Viva em 2011. Como comemoração aos 50 anos da Rede Globo, eu não vejo melhor opção a ser eleita para tal ocasião. Um dos maiores êxitos da nossa teledramaturgia, recordista de audiência à época, O Rei do Gado continua a ser sinônimo de sucesso. Ela representa uma era ouro das nossas produções dramatúrgicas, não se encontrando lá nos primórdios da emissora, nas saudosas obras da era Janete Clair, nem nas atuais fases de vacas magras das recentes produções. Ela marca uma fase de grande amadurecimento das nossas telenovelas, com textos mais densos, histórias envolventes e surpreendentes, quando autores ousavam e abusavam da criatividade.

Dos trabalhos de Benedito Ruy Barbosa - dos quais tenho conhecimento -, considero a saga das famílias Berdinazi e Mezenga a obra-prima da sua carreira. Apaixonado pelo universo rural e construtor de personagens fortes, de personalidade marcante, Benedito conseguiu através da rixa das duas famílias e do romance proibido de Giovana e Henrico - que atravessou geração e renasceu em Bruno e Luana -, fascinar o país e falar da terra, a grande protagonista de toda a novela. Foi pela disputa por um pedaço de chão entre as terras de Antônio Mezenga e Giuseppe Berdinazi que surgiu todo o ódio entre as duas famílias. Foi a terra que produziu os quatro milhões de pés de café e enricou o velho Geremias. A mesma terra que Bruno Mezenga precisava de pastagem para seu gado, e que Regino tanto sonhava dividida entre seu povo do Movimento dos Sem Terra, sem nenhum pedaço de chão .

Ao abordar a luta do MST de maneira pacífica, humanizada, Benedito conseguiu fazer o país enxergar a questão com uma maior identificação. Jogou escancaradamente na cara do povo a cruel desigualdade social em que o país se encontrava, e que hoje, 18 anos depois, ainda não está muito distante da nossa realidade. A figura de um senador íntegro e incorruptível, que abraçou a causa da reforma agrária como sua, mais parecia uma piada, embora simbolizasse a esperança em políticos que ainda se importam com o futuro da nação e o querem ver limpo de toda essa bandidagem 'legal'.

Personagens bem construídos e bem interpretados, em histórias críveis, tocantes e bem desenvolvidas, transformaram O Rei do Gado nesse grande clássico da nossa teledramaturgia desde a primeira tomada, quando fomos abrilhantados com os sete capítulos iniciais impecáveis de sua primeira fase, na década de 40. Um primor de qualidade e superprodução, que chegou a durar dois meses para ficar pronta, tamanho era o capricho da equipe envolvida. Cenas memoráveis acompanharam toda a trama e fizeram o telespectador entrar realmente na emoção que era proposta. Simbologias, metáforas e muita poesia embalaram os capítulos com câmeras que adentravam os ambientes e as sensações dos personagens, como um amigo confidente que sorri e sofre junto.

Impossível não destacar a interpretação de Tarcísio Meira na figura do inflexível Berdinazi. Sua cena no cafezal plantando a medalha do filho morto na guerra, na esperança de vê-lo renascer é de uma verdade cênica e poesia incomparáveis na teledramaturgia nacional. Raul Cortez também soube conduzir precisamente seu velho rancoroso e solitário Geremias, corroído pelo remorso dos erros do seu passado. A dúbia Rafaela, de Glória Pires, chegava a despertar diferentes reações nos telespectadores, que ora a sentiam como vilã, ora se apiedavam dela, nada mais humano. Letícia Spiller, que acabara de sair de sua espevitada Babalu, de Quatro por Quatro, não poupou encanto e talento na sua doce e determinada Giovana. Encanto que pudemos ver ressurgir logo na primeira cena de Patrícia Pillar como a bronca Luana. Por trás do jeito xucro e arredio da cortadora de cana, podíamos perceber os traços delicados da Berdinazi de Letícia. 

São muitos os destaques da história, mas não poderia deixar de mencionar também a riqueza de Zé do Araguaia e Donana, de Stenio Garcia e Bete Mendes. Juntos, eles representaram fielmente o universo rural da segunda fase fundindo-se quase em um personagem só. E claro, Antônio Fagundes, que conseguiu dar vida a dois personagens completamente diferentes e cheios de nuances e sensibilidade. O maior mérito de Benedito em O Rei do Gado talvez esteja na valorização de personagens incomuns nas telenovelas, mas corriqueiros no dia a dia. É possível enxergar-se em O Rei do Gado ou enxergar um amigo, um vizinho... E ainda não falei de sua trilha sonora, a mais vendida de todos os tempos, recheada do sertanejo da época e de pérolas como Admirável Gado Novo, de Zé Ramalho, e Correnteza, de Tom Jobim, na voz de Djavan. Em tempos de escassez de boas histórias para acompanhar, a re-reprise de O Rei do Gado talvez seja uma boa oportunidade para relembrarmos que já tivemos e temos capacidade para produzir grandes e memoráveis obras na nossa teledramaturgia. Finalizo com a frase do capítulo final que resume bem todo o fio da trama:

"Deus quando fez o mundo, não deu terra pra ninguém, porque todos os que aqui nascem são seus filhos. Mas só merece a terra aquele que a faz produzir, para si e para os seus semelhantes. O melhor adubo da terra é o suor daqueles que trabalham nela".

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