quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Retrato de alguém

Um pé na frente do outro. Nunca examinei com tanta precisão os meus passos ao caminhar. O azul do tênis desaparece entre o amarelo cinzento do pó da estrada. Nenhum sinal de esperança, além dos arbustos e do meu suor escorrendo pela face, cada vez mais, como uma cerveja fria vazando num copo cheio. As gotas geladas contrastam com a secura dos lábios e a chapa quente da cabeça. Cansaço, medo, insegurança, fôlego. Sinto a dor fustigar os últimos esforços das minhas pernas em se manter firmes. O sol me insulta ao abusar de sua intensidade sobre as minhas costas fatigadas com os 5kg da mochila, que agora somam 20. Uma pequena sombra embaixo do que já foi um grande umbuzeiro me protege agora contra o calor. Sentado num toco já apodrecido, bebo os últimos goles da água que me resta no cantil, e limpo o suor da testa com a mão. Nada! O isolamento completo! O abandono da alma. O encontro com o demônio privado. Neste resto de mundo, o resto do que seria um homem.

Já não há mais razão para remorso ou culpa. O que é fato não pode ser modificado, nem apagado. Encarar as atitudes com resignação é tudo que pode ser feito. Recordo-me uma vez ao visitar a casa de um amigo no sítio de um senhor muito intrigante: cabelos brancos, barba comprida e um olhar vazio. Ele era conhecido pelo trato grosseiro ao rebanho da região. E os animais respondiam na mesma linha a sua presença. Uma relação mútua de desafeto se estabelecia. Certa noite, encerrado seus serviços, o encontrei ao pé de uma cancela observando o gado. Ele não parecia mais o senhor agitado de antes, tinha uma expressão de pesar no rosto. Foi então que entre uma conversa e outra, ele me contou que a vida toda sonhou em ser caubói e participar de rodeios, mas sempre teve medo de encarar o desafio, deixando suas vitórias apenas para a imaginação, até quando percebeu que o objeto de seu sonho havia se transformado na razão de seu dissabor. Se afastou dizendo que pensar demais em como as coisas podem ser, não sobra tempo pra elas realmente serem. Então foi um pouco o que fiz. Decidi não mais pensar. E aqui estou, a olhar o nada do meu pensamento.

Algumas aves escuras cruzam o céu a me observar. Mas não serei seu alimento. Não ainda! Recolho a mochila e sigo caminhada. Mais alguns quilômetros e a primeira visão de algo pulsante a se mexer. Uma iguana atravessa a estrada apressada como a fugir. De mim? Mais alguns passos e escuto vozes, uma música distante que se aproxima mais e mais. Avisto então um jumentinho amarrado a uma árvore e mais ao lado um casebre de taipa, mais parecendo um bar. Ali no meio do nada. Algumas mesinhas e banquinhos de tronco de árvore do lado de fora. Agora posso ouvir nitidamente a canção. De um toca-fitas de pilha fixado sobre uma base de madeira ao lado da porta sai: São Tantas Coisas, de Roberta Miranda. Fico estático diante de inusitada situação. Um homem então sai do casebre e me encara. Um sujeito retraído, calça bege envelhecida e dobrada no calcanhar, camiseta que um dia foi branca aberta até o peito e botina preta. Sua expressão sutil e desinteressada revela o desgaste de uma fisionomia que parece bem mais gasta do que realmente é. Uma alma castigada pela sorte? Entre o clima tenso entre nós dois, o refrão de Roberta Miranda: "vou confessar, renunciei você de tanto louco amor..."

Ainda me encarando, ele leva a mão direita ao bolso da calça e puxa um velho maço de cigarros, pega um isqueiro no outro bolso, acende e senta-se em um dos banquinhos, sem mais se importar comigo. Resolvo entrar naquele lugar. Uma mulher de meia-idade, rosto alheio e pele queimada do sol limpa um simples balcão e pouco caso faz com a minha presença. Quando volta o olhar em minha direção, pronuncio a única palavra que consegue sair de meus lábios: água! Minutos depois me esbaldo em um bife de panela com arroz e feijão tropeiro. Saciada a sede e a fome, sou informado onde poderei lavar o rosto. Do lado de fora, vou até um poço de onde puxo em um balde de alumínio amassado, a água para banhar a face e os pés. Hora de retomar a caminhada. Nem o jumento, nem o homem estão mais em frente ao casebre. Recolho minha mochila e pego a estrada revigorado.

2 comentários:

  1. Já conferi, ri e refleti:
    Pensar não resolve nada, só nos leva a uma vida de frustração, por não lutar, não se jogar, não dá a cara pra vida.

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  2. eu acho que temos que ir aluta porque se nao fica como esse homen so lembrança, temos que mergulhar devez pra conseguir alguma coisa hj,adorei o texto fazia tanto tempo que nao lia estava com saudades desse texto tao bom que parece que tamos vendo tudo acontecer va em frente meu camarada.

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