domingo, 3 de abril de 2011

Esperando o efeito passar

- Você faz engenharia?

Havia acabado de assistir a mais um filme das comemorações do centenário de Chico Xavier, e ainda envolto de emoções caminhava em busca da saída do shopping. Pessoas passando por mim e minha mente ainda nos 110 minutos que ficaram na tela. Cheguei à saída, mas não podia ir embora ainda, precisava respirar um pouco o ar fresco daquela noite. Olhei em volta, todos os banquinhos estavam ocupados. Fiquei parado por alguns segundos na esperança que alguém abandonasse um deles e eu pudesse me sentar. Ao olhar mais ao lado percebi que em um dos bancos havia somente uma moça sentada. Resolvi ir até lá e ocupar o espaço restante. Da maneira sorrateira que me aproximei, atravessando até alguns galhos de palmeira, me surpreendi pela moça não pensar que iria assaltá-la. Sentei, coloquei a mochila em meu colo e fiquei revivendo todas as sensações que o filme tinha me proporcionado. Olhei para a moça do meu lado enquanto ela olhava na outra direção e tudo parecia tão sem importância tamanha a dimensão do que acabara de assistir. Ela então se voltou para o meu lado e eu desviei o olhar.

Mais alguns minutos, um rapaz apareceu e começou a conversar com ela sobre uma moto. Parece que a moto dele estava com problema e seria preciso levá-la até a oficina mais próxima. Ele não parecia aborrecido. Pelo horário a oficina estaria fechada, mas ele havia telefonado ao proprietário que autorizara levar o veículo até lá. Ele saiu então e logo o vi passando por nós empurrando uma Biz. A moça pegou o celular e ligou para alguém. Queria confirmar com uma amiga se iriam sair mais tarde, e enquanto narrava o problema com a moto do namorado, lamentava provavelmente não poder ir. Desligou o celular, olhou para os lados e entrou novamente no shopping. Eu, porém, nem pude me estender um pouquinho mais no banco. Logo uma senhora e um rapaz se aproximaram como se encontrassem os últimos ingressos para um show de rock. Com sua bagagem bastante espaçosa, fiquei bem mais exprimido no espaço que me restou do banco. Puxei meu braço debaixo de sua axila, quando ela se virou para mim, me examinou e saiu com essa: - Você faz engenharia?

Pensei: "quem é essa mulher? Será que está me confundindo com alguém?" Então a olhei surpreso, e neguei sua pergunta. Sua explicação era óbvia. Quando vê alguém da minha idade com uma mochila nas costas já sabe que faz engenharia na UFCG. Afinal, que outro curso alguém que usa mochila poderia fazer, não é verdade? Não, minha senhora, eu uso mochila simplesmente porque gosto. Claro que ela não se contentou com o fato de ter errado seu palpite e o interrogatório teve início.

- Terminei jornalismo. - respondi.

- Na UEPB? O curso é bom? Quer dizer que tudo depende do aluno. Se fizer um curso bem feito vai ter algum futuro, agora se for como eu fiz Serviço Social, aí já era, não consegue nada. Ô "cursozinho" difícil e mal feito esse que eu fiz. Você é daqui?

- Não. Rio Grande do Norte.

- Ah, então a gente pode falar mal da cidade. Porque pense numa cidade sem nenhum lazer e cheia de gente metida. Eu aguento porque não tenho outra opção. Olha esse trânsito! Já viu coisa mais absurda? Todo mundo quer passar na frente. Tá cheio demais aqui pra mim. Lá no Ceará também é assim? Eu penso que é só aqui.

- Rio Grande do Norte. - enfatizei.

- Ah, é. Natal!

- Não. Eu sou do interior.

- Ah, então não deve ter nem trânsito, né?

- Olha que incrível. Tem! - afirmei numa ironia que não sei de onde arranquei.

- E tem? (numa admiração impressionante). Mas garanto que não é como esse inferno aqui. E espere aí, você saiu de lá e veio fazer faculdade aqui? Não tinha nenhuma por lá, não? Ah, é porque é interior, né? Tá certo.  Eu já fui ao Rio Grande do Norte. Natal é maravilhoso. Natal! - enfatizou bem no final.

Fiquei cá comigo. Claro, minha senhora! Que outro lugar no Rio Grande do Norte poderia ser tão exuberante quanto a capital? Se até Campina Grande era ínfima aos anseios daquela cidadã, imaginem todo o interior de um outro estado que a seu ver deveria ser igual ou pior ao que nos encontrávamos.

- Você gosta daqui? - continuou investigando para saber se poderia prosseguir o tricô e ainda fazer um babado.

- Gosto!

- É, a gente se acostuma com o que tem. Já conheci muita gente que diz só sentir falta daqui depois que sai.

- A senhora é de onde? - agora quem não aguentou de curiosidade fui eu.

- João Pessoa! Meu marido que é campinense.

Ah, tá. Agora entendi. Primeiro mundo. Outra cultura. Temperatura amena. Cento e vinte quilômetros de uma realidade bem distante da nossa. O rapaz ao seu lado, que parecia seu filho, transparecia o incômodo que aquela conversa estava gerando ali através da facilidade daquela mulher em estabelecer diálogos tão "agradáveis" com estranhos. Ainda bem que o carro de seu marido chegou e ela saiu correndo com o garoto entre o trânsito caótico que descreveu. Ainda escutei seu "tchau". "Tchau, senhora! Cuidado com os raios UV mesmo à noite, afinal a senhora não está acostumada com um clima tão mirrado". Ainda tentei redirecionar meus pensamentos novamente ao filme, mas um novo casal se aproximou do banco com um filho pequeno.

A mulher e a criança sentaram e o homem permaneceu em pé. Esses ao menos não eram dados a colóquios com estranhos. E depois de acenderem um cigarro cada, e do homem afirmar que desejaria passar mal toda vez que iria fumar na tentativa de parar, se levantaram e foram embora. Agora o banco era só meu. Nenhuma ameaça de invasão. Só eu e meus pensamentos. Foi quando lá distante comecei a escutar a música A Whiter Shade of Pale da banda britânica Procol Harum que vinha de não sei onde. A canção famosíssima na década de 60, detentora de uma nostalgia sem igual e que recentemente esteve na série Afinal, O Que Querem as Mulheres? da Rede Globo, sendo a música preferida do personagem principal. Com essa definitivamente despertei de qualquer estado que o filme As Mães de Chico Xavier pudesse ter me deixado. Voltei rapidinho ao mundo real, peguei minha mochila, coloquei nas costas e fui embora deixando o banco vazio, enquanto a canção continuava soando ao fundo como uma trilha sonora. Minha ou do banco?

5 comentários:

  1. Samuca...
    Devo-lhe confessar que sempre me delicio com seus textos. Este em particular possui um estilo que muito me agrada. A descrição da cena foi riquíssima e o teor cômico foi muito bem conduzido. Parabéns por este... E pelos outros tão bem escritos.

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  2. tambem ja me aconteceu comigo um dia no shoope, tava sentada no banco e chegou uma mulher e começo a fazer pergunta dizendo que detestava campina e convesou fez muita pergunta, emfim foi como o que vc escreveu ai, por isso que gosto do ses texto que parece que estamos lendo um livro louco pra ver o final, adorei.

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  3. Entao vc é de Natal?Nao sabia.kkkk,Brinks.
    Sam,vc aparenta ser tao calmo.
    Adoro os detalhes dos seus posts.
    Abraços.

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  4. amei o texto, gosto do estilo, tão ricos em detalhes, que nos faz senti personagens do texto.

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  5. Obrigado a todos pelos comentários!

    Ah, Lobinho, sou mesmo não diria calmo, mas na minha, não sou dado à agitação. Agora me tirem do sério e sai da frente que o negócio fica feio. A tranquilidade cede facinho à explosão! rsrs

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