sexta-feira, 4 de março de 2011

Um hipocondríaco no Rio

Fazia alguns meses que havia tomado essa decisão. Quero ir ao Rio. Preciso conhecer essa cidade que sempre me deslumbrou e me atrai como um ímã. E a oportunidade de embarcar com uma turma do curso de filosofia em um congresso em Niterói era quase que inacreditável pra me acordar pra vida. Mas poucos dias antes da viagem que não seria nada confortável, no mínimo uns dois dias dentro de um ônibus atravessando o país, comecei a me sentir diferente. Uma canseira do nada, palpitações, vista cansada. Sem falar na crise de garganta que acenava sua chegada. Talvez a tensão, a ansiedade. Na véspera de viajar fui ao meu psiquiatra e relatei o que sentia. Receita na mão, medicamento comprado e embarque garantido no dia seguinte. E claro, como bom hipocondríaco que se preze, uma farmácia inteira dentro da mochila. Entre estranhos, quietos e excêntricos, eu, Suellen e Cris, que iríamos apresentar uma esquete (pequena peça) sobre os textos de Medeia e Gota D'água, durante a apresentação do trabalho de Suellen. Apesar do enfado, foi uma viagem tranquila, por momentos até divertida. Só tinha que ficar atento aos horários dos anti-inflamatórios e antibióticos para a garganta. E quando o coração disparava um pouco mais, respiração profunda e comprimidos para relaxar. Se batesse aquele enjôo, sacava um Dramin e tudo resolvido.

Com todo esse reforço farmacológico, chegamos ao tão sonhado Rio de Janeiro. Todos os sintomas que eu pudesse ter sentido durante a viagem se esvaíram quando vi ainda de Niterói aquela imagem pequenina do aclamado Cristo Redentor. Olha! O Pão de Açúcar! É, realmente estávamos ali. Desci com cuidado do ônibus para poder pisar pela primeira vez em solo fluminense. Uau! Chegamos ao paraíso. Um pouco mais quente do que se pensava, mas ainda assim, deslumbrante. Fomos encaminhados de mala, cuia, bacia e bengala (ser ator tem seus vexames) ao nosso alojamento. Não era o Copacabana Palace, mas pra mim já estava de bom tamanho. A cada momento chegava mais gente de todo buraco do país. Era um carnaval de sotaque. Até quis brincar de "advinha de onde eu sou?", mas rolou um certo preconceito com quem não forçasse o "r" ou chiasse no "t". Teve uma discussão interessante acerca do organizador do evento ser gay, porque destinou os melhores banheiros aos homens com direito a espelho e ducha privada, enquanto as mulheres sofriam em duchas coletivas e apertadas. Mas no fim chegou-se a conclusão que a organizadora era que deveria ser lésbica, porque poderia ver toda a mulherada nua tomando banho.

No mesmo dia, depois de atravessar a Baía de Guanabara de barca e fazer uma visita à famosa praia de Copacabana, caímos num sono merecido e finalmente livre do desconforto das poltronas do ônibus, apesar de termos dormido com a luz acesa, pois nos avisaram que se apagassem a luz os ventiladores também desligavam, e no meio da noite acordei derretendo com a danada da luz acesa e os ventiladores parados zombando de mim. Amanheci já tenso com tudo isso. Depois enfrentamos uma fila do tamanho da ponte Rio-Niterói para comprar o ticket do nosso almoço no restaurante universitário, e outra maior ainda para entrar. O calor e a multidão começaram a me inquietar. Uma canseira nas pernas, coração acelerou. Olhava o Cristo e a sensação aumentava. E no dia seguinte ainda teria a nossa apresentação da esquete. Almocei e de volta ao alojamento tentei dormir um pouco. Inútil. Acordei pior. O coração ia sair pela boca, uma tremedeira. "Vou ter um infarto, uma parada cardíaca". Lá fomos eu, Suellen e Cris de táxi ao hospital mais próximo evitar que o ônibus retornasse com um passageiro a menos.

Nossa primeira parada foi no Hospital das Clínicas de Niterói. Requinte até no lixeiro. Ainda bem que plano de saúde serve para isso. Ao menos no nordeste. Não aceitaram minha Unimed. De volta à rua com um paciente à beira de um colapso, saímos sem destino em busca de outro hospital ou um táxi. Nessas horas é que acredito na intervenção divina. Acabamos nos deslocando exatamente ao hospital que uma moça do alojamento havia indicado. Chegamos e a notícia é que a situação era precária, e nem a emergência estava funcionando, só em casos extremos. Mas o meu era extremo! Saí do nordeste pra morrer em Niterói, sem conhecer o Cristo, Ipanema, Leblon, o Jardim Botânico? Fomos avisados de outro hospital duas esquinas dali, mas que a situação também era semelhante. Resolvemos arriscar. Fomos na recepção, fizemos uma ficha e pouco tempo depois um moço descontraído nos atendeu. Tinha uma tranquilidade na voz que até relaxei um pouco. Ele então nos encaminhou a uma médica em outra sala. Uma moça jovem também, simpática, mas não tanto quanto o rapaz, me examinou, perguntou o que eu sentia, segurou meu braço, que não parava de tremer e sentiu o pulso por alguns segundos. Diagnóstico: crise nervosa! Medicamento: 10mg de diazepam.

Saber que não estava em processo de infarto e que meu coração funcionava bem foi tranquilizante. Sentei na enfermaria à espera do meu medicamento. Foi aí que Suellen resolveu pensar alto: vai dormir por uns dois dias. "O quê?! Como assim? Não! Não vou dormir por dois dias aqui. E a esquete amanhã? E o Rio todo ainda a conhecer?" Para completar uma senhora começou a se tremer toda numa cadeira a minha frente. Outros gemiam. Saí de fininho em direção a saída, enquanto Suellen tentava tranquilizar a senhora. Quando a enfermeira chegou com o meu medicamento, cadê o senhor Francisco Samuel? Cris queria sumir em meio àquilo tudo. Lá Suellen me procura pelo hospital, até me encontrar do lado de fora. "Entra já e vai tomar aquele remédio, ou eu não apresento a esquete amanhã". - "Mas se eu tomar e dormir, não vamos apresentar do mesmo jeito". A discussão rolou ainda alguns minutos até que terminei entrando e tomando. Ela foi convincente. Ficamos ainda um tempinho por lá e fomos embora. Até boa parte da noite, as palpitações sumiram. Mas algumas horas depois retornaram. Tentei dormir, mas o efeito colateral do remédio ficou no mito. Passei a noite em claro.

Saímos para a apresentação pela manhã e eu só rezava para não cair no meio dela. Respirava fundo, tentava manter o equilíbrio, meio difícil para quem sofre também de labirintite. Mas enfim, conseguimos apresentar o trabalho, e olha, não passei mal durante a apresentação. Na verdade, me senti extremamente disposto ao final. Tanto que já queria atravessar a Baía de novo e sair explorando o Rio. O que acabamos fazendo nos dias seguintes. Conheci tudo que desejava, fui até guia de Suellen em algumas paradas, sem nem perguntar ao cobrador onde descia. Resolvi o problema da luz acesa, descobrindo onde apagavam as luzes sem desligar os ventiladores. E aquele mal estar? "Qual?" Me senti tão bem nos outros dias que enfrentaria mais um mês ali. Na volta pra casa estava tão exultante com tudo que tinha conhecido que esqueci até dos horários dos anti-inflamatórios. Fui um dos mais animados, enquanto boa parte da galera voltava com gripe, crise de garganta, febre. Aí nesses momentos que é bom ter um amigo hipocondríaco por perto. A farmácia da minha mochila foi o banquete e a salvação de todos.

5 comentários:

  1. valeus sam vc e muito corajoso, e confiante, e tambem emfermeiro porque se nao fosse vc ai daqueles que vinha com vc,vc e nota 1000000adoro seus texto.

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  2. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
    FOi um resumo, mas bem detalhado de uma aventura de 11 dias q pareciam 11 meses! Mas, valew muitOo tudOo e relembrar nas suas palavras faz tudo aquilo ter valido apena mesmo! Mas, espero outra relembrando nossa rotina la de cafés da manha na padaria e jantas na lanchonete da Tia de Niterói, sem contar com a praça de alimentação do shopping queimada, mas isso é pra outra inspiração do senhor escritor! rsrsrs
    Te amOo e é muitOo bOm compartilhar essas sensações com vc!

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  3. Ri muito com seu texto.Hilário como sempre,Sam.
    Este post me lembrou um incidente na minha vida.kkkkkkkkk.
    Tenha um ótomo feridao,menino!
    beijos.

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  4. Este texto lembrou-me as fugas de Ingrid Bitencourt nas florestas colombianas. A riquezados detalhes nos faz viajar com vc nesse onibus cheio de emoções, alagrias, agonias e deslumbramento do desconhecido. Não preciso dizer, que os seus posts são muuito bons. devia fazer uma coletânia e escrever um livro. A gente vende aqui na net mesmo. rs. Bom carnaval

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  5. Muiiiiiiiiiiiiiiiiiiiito bom...dei boas gargalhadas!!! Que maravilha, ser artista, ser gente!!! Amei!!!Parabéns!!!

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