sábado, 19 de fevereiro de 2011

Vai encarar?

"Me olha no olho!" "Eu tô falando com você! Me encara!" "Olha pra mim!" Por que as pessoas querem tanto que alguém esteja sempre as olhando enquanto falam? Eu sempre tive dificuldade de encarar o olhar do outro quando estou conversando, principalmente se minha intimidade com o outro não for além do habitual "tudo bom?". Eu fujo do olho alheio. Sempre fugi. Na escola tentava ser o mais invisível possível, me esgueirava pelos cantos para não ser visto, mas parece que quanto mais me esforçava, mais era percebido. Nas festas, nas praças, igrejas e calçadas era sempre o cara de cabeça baixa seguindo seu destino temeroso aos olhos alheios. Dediquei grande parte de minha vida a me reclusar em casa, me fechando do mundo e do que a ele pertencesse por medo do poder escondido nas córneas de cada um. Bastava um olhar, e uma inquietação subia pelas pernas, as mãos não sabiam onde se manter, os olhos giravam mais que ventilador no nível 3, e nunca de encontro ao olhar que me dirigiam, ou caso isso ocorresse a rotação do olhar saltava para o nível 7.

Uma certa timidez acompanhada de uma boa dose de insegurança marcaram esses meus dias. Nada que o majestoso tempo não pudesse interferir com seu sopro. Contudo, as paranoias que o tempo varreu deixaram algumas cicatrizes, e ainda hoje tenho dificuldade de concentração quando tento argumentar olhando no olho de alguém. As ideias fogem como eu fugia dos olhares na infância. Sinto a expectativa do outro em mim, enquanto permaneço ali perdido sem foco, roubando a atenção alheia e contando os segundos para reorganizar as peças e não ser abatido como um porco. Se eu quiser realmente elaborar uma teoria e explanar sobre ela com as pessoas, não me peçam para encará-las. Simplesmente perco o foco. O olhar do outro leva embora a minha concentração. E por que os olhos mais do que tudo incomodam tanto? Acredito que eles sejam os órgãos do corpo humano que melhor expõem as nossas fraquezas e nos mostram muito mais do que as imagens do mundo, nos permitem chegar a fundo na natureza almática de cada um.

Indiscutivelmente, é uma tarefa que exige um esforço imensurável de minha parte, mas que consegue obter um significativo resultado ao final. É necessário apenas olhar. Fixar a visão no olho do outro, como se desejasse se ver através de sua imagem refletida num espelho. Com certeza será possível chegar até o outro, nu, livre de qualquer julgamento, desarmado. Vai encontrar o outro. Entretanto, independente do meu trauma de infância, encarar o olhar de um desconhecido é sempre um desafio a qualquer um. Podemos observar uma pessoa em um ponto de ônibus, numa praia, num supermercado, mas é só essa pessoa nos lançar seu olhar que já desviamos e fingimos apenas cuidar da nossa vida. Afinal, quem vai permanecer encarando um estranho até ele se invocar e sair com no mínimo um "que é"? O olhar incomoda. Todos querem ver, mas ninguém quer ser visto. Ou quase ninguém. Há quem faça desses olhares seu verdadeiro quintal.

Nesse aspecto, não há ninguém que supere os recém-nascidos no quesito encarar. Eles são os únicos que encaram de verdade o outro e ainda fazem careta ou choram se não forem com a cara. As crianças já não são nem tão determinadas assim. Por influência da sociedade que evita o cara a cara, elas já começam a desenvolver uma auto-crítica quanto a não continuar observando o outro quando notadas. Algumas tentam, mas acabam escondendo o rosto envergonhadas ou em desespero, como se algum espião da KGB tivesse sido identificado. Outro dia, enquanto aguardava meu ônibus no terminal de integração, um recém-nascido começou a me olhar, daí não me contive e passei a observá-lo também sorrindo. Ele se mantinha sério, analisando cada ponto do meu rosto e do meu corpo, indiferente ao meu sorriso. Depois se virou e passou a olhar o carrinho de picolé. Ainda voltou o rosto na minha direção, mas a mãe percebeu e o mexeu para que ele deixasse de me olhar. Já começam as interferências.

Se o olhar nos diz quem somos, imaginem o mundo inteiro cego. Um único deficiente visual pode contar com o auxílio do outro para pegar uma condução, mas numa cegueira universal nem trânsito haveria. É um caos semelhante ao que se encontra no filme Ensaio sobre a Cegueira, baseado na obra de José Saramago. É a degradação do ser humano aos seus instintos mais primitivos, uma luta pela sobrevivência em um local planejado para ser visto. De certo modo, somos esses cegos quando negamos o nosso direito de enxergar e fugimos aos olhos do outro. O que nos intimida tanto? Talvez a saída da superficialidade e o conhecimento do outro a fundo. Temos medo do que encontrar, de nos perder ou de nos reconhecer? Afinal, somos todos oriundos da mesma matéria e particularmente distintos. E por que não encaro as pessoas, e provavelmente continuarei a agir assim? Porque no fundo temos medo de nós mesmos, sabemos que julgando, seremos julgados, sabemos que se olharmos diretamente até no olho de um cego, encontraremos uma chama acesa lá dentro, acharemos o outro e encontraremos a nós mesmos.

3 comentários:

  1. Sam,na minha infancia,minha mae ensinou os filhos a olharem dentro dos olhos das pessoas.Segunda ela,isso mostrava o caráter da pessoa.

    Pura verdade: Porque no fundo temos medo de nós mesmos, sabemos que julgando, seremos julgados, sabemos que se olharmos diretamente até no olho de um cego, encontraremos uma chama acesa lá dentro, acharemos o outro e encontraremos a nós mesmos.

    Tenha um ótimo findi!
    Beijos.

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  2. Certa vez em uma dinâmica tive que encarar por 2m uma pessoa que estava ao meu lado. Sinceramente foi desconfortável. É muito intimista essa coisa de encarar. E quando a pessoa é alguém que não gostamos? Eu encaro. Gosto de conversar olhando nos olhos da pessoa. Meu pai dizia que era olhando nos olhos que a gente encontra o caminho para chegar no interior das pessoas. Ele dizia: "Os olhos é a luz". gosto de dizer q amo suas crônicas.

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  3. eu tambem ainda hj sinto dificuldade de olhar de frente nos olhos das pessoas, so olho quando tenho intimidade agora com outra pessoa eu olho mas nao fixos, mas e verdade e medo da verdade.

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