sábado, 1 de dezembro de 2007

Fora da Rotina

Situações novas e curiosas que quebram a rotina diária da sociedade são sempre dignas de grande interesse público, buscamos nela o diferencial para aquele dia, até mesmo o gás para nos manter fortes e com o papo em dia. O problema é quando isso envolve valores como respeito e solidariedade. Vinha de mais um dia de trabalho no Sebrae por volta do meio-dia, quando passei em frente à catedral da igreja católica e me deparei com o desespero. Uma multidão se formava em torno da calçada do supermercado Bompreço e tomando boa parte do asfalto. Alguns carros buzinavam.

Me aproximei curioso e perguntei a uma senhora o que havia acontecido. Ela me respondeu que um rapaz em uma moto tinha atropelado uma garotinha que cruzava a rua. Olhei para a calçada e pude ver a menina chorando ensangüentada e sentindo muitas dores. Um homem de aparência jovem falava constantemente com ela tentando mantê-la consciente. Outra senhora protegia a menina do sol com seu guarda-chuva. Me afastei um pouco e fui até a pista onde o garoto que havia atropelado a menina estava deitado no chão. Lá encontrei outra confusão. Um homem queria levantar o garoto e levá-lo para o hospital, enquanto que uma mulher gritava eufórica dizendo que ele devia permanecer ali, que não podiam movê-lo ou poderia complicar seu estado.

Fiquei observando a situação. O garoto se contorcendo no asfalto quente e aquelas pessoas em volta discutindo. Chegaram até a chamar a senhora de louca. No fundo acredito que ela tinha mais razão do que os outros. Mas logo a unidade do SAMU chegou e a situação se acalmou. Eles agora resolveriam a problema. E cada vez mais gente se aproximava. Havia aqueles que apenas olhavam curiosos, como se estivessem diante de uma atração de circo, tinha aqueles solidários, que buscavam o que fosse preciso para ajudar os paramédicos e aqueles como eu, que olhavam com um interesse por trás: divulgar! É, um repórter chegou lá e fotografou o garoto deitado na pista como se fosse o grande "furo" do dia. E o garoto o olhava estranho como quem dissesse: "eu não acredito que esse cara tá me fotografando nessas condições", e ao mesmo tempo imaginava: "eu vou sair no jornal".

Minutos depois outra unidade do SAMU chegou e preparou a maca para imobilizar o garoto. Enquanto isso, a menina era atendida pelos outros paramédicos. De repente notei que ela segurava a mão de uma mulher sem soltar, foi quando ouvi uma senhora pronunciar atrás de mim que se tratava de sua mãe. E logo percebi um homem extremamente zangado e reclamando em alto tons que a mãe da menina quase a matava deixando-a correr solta pela rua. Era o pai tentando encontrar um culpado para a fatalidade. E o tempo passava. Nessas alturas o trânsito já estava completamente paralisado. Algumas pessoas tentavam conter a aglomeração de gente sem grandes resultados.

Foi quando decide me afastar e seguir meu destino. O rapaz já entrava na ambulância e logo mais a menina também. A vida seguiria seu curso e mais alguns minutos apenas as conversas de curiosos restariam no local. Então olhei por mais alguns segundos e fui embora. Certamente um grande acontecimento na cidade, coisas que não se vê todo dia. Fui ao shopping sacar dinheiro no caixa do banco e minutos depois saí e me dirigi a um restaurante para almoçar. Descendo em busca da praça Clementino Procópio percebi que havia uma outra multidão atrapalhando o trânsito ao lado do Shopping Edson Diniz. Pensei: "outro acidente? Seria possível?". Corri mais que depressa para o local e vi outra unidade do SAMU parada na contra-mão e várias pessoas em volta. Perguntei a uma mulher o que se passava. E fiquei mais surpreso com a resposta. Uma unidade do SAMU que vinha socorrer as duas vítimas do acidente de moto mais acima, saiu na contra-mão para escapar do engarrafamento provocado pelo acidente e acabou atropelando uma senhora.

Realmente, era algo raro na cidade. Daqueles tipos de coisas com efeito dominó. Uma senhora que seguia sua vida e não tinha nada a ver com o acidente de mais cedo, agora sofria as conseqüências da desconstrução de uma rotina diária. Essa senhora eu já não pude ver. Quando cheguei já haviam a colocado dentro da ambulância, mas como aquela unidade não poderia sair dali porque a perícia tinha que fazer o reconhecimento, tiveram que esperar outra unidade. Quatro unidades descoladas para um mesmo local em um único dia. Agora não me controlei, tirei o celular e bati uma foto. Precisava registrar algo. Porém, a memória do meu celular estava cheia e só consegui registrar uma cena.

Quando a outra ambulância chegou, transferiram a mulher para ela. O momento da transferência foi como se o papa saísse na janela do Vaticano e acenasse. Todos correram para olhar e se espremeram para conseguir ver pelo menos a maca que estava com a senhora. Nessa hora tentei subir no prédio do shopping para conseguir uma foto de cima, mas os imensos galhos de árvores não tornaram a visão muito privilegiada. Depois disso, fui almoçar. E não consegui deixar de pensar em tudo o que vi. Claro, acidentes acontecem diariamente, e mesmo que não sejam tão freqüentes em determinadas cidades, fazem parte do ritmo frenético de vida que vivemos. Mas o que me chamou a atenção foi a atitude de cada um em relação ao fato. Pude presenciar pessoas que realmente sabem o significado das palavras doação e compaixão. Vi pessoas que tratavam tudo com muita naturalidade e com grande desespero. E havia quem até risse com tudo aquilo. Somos muito imprevisíveis e a vida constrói diariamente nossas atitudes e emoções. Só um detalhe não podemos fugir. Em situações como essas todos desfrutamos do mesmo desejo inconsciente e instintitivo: ver e divulgar!

Um comentário:

  1. Isso é que é: está na hora certa e no lugar certo, no bom sentido, claro. Impresionante o aprendizado obtido e transmitido, não só divulgar pordivulgar, mas saber vê como repórter e, sobretudo, com alma de ser humano.Rotinas...nada tão comum para que por um minuto possa sair dela.
    Saskia COutinho

    ResponderExcluir

Colheitas